
Miguel Paiva no site Memorial da Democracia
Na época da constituinte, frequentei muito o congresso nacional. Como presidente da União dos Vereadores de Minas Gerais, levava aos parlamentares reivindicações e propostas municipalistas. Dentro ou fora do plenário, acompanhava os muitos debates, principalmente dos companheiros de Minas Gerais. Era comum, o xingatório. Mas, para dar um certo ar de decoro, o deputado ou senador sempre utilizava um respeitoso “vossa excelência” antes de mandar brasa. O próprio Supremo reconheceu que o xingamento está coberto pela imunidade parlamentar: “as manifestações feitas durante a sessão, mesmo com ofensas e xingamentos, representam um elemento de debate político, criticável, mas que se enquadra dentro das atribuições do parlamentar”(ministro Edson Fachin, abril 2016). Quando o palavreado vai para um nível mais baixo (?), o caso segue para o Conselho de Ética.
Para mim, o mais famoso xingamento, e sem o “vossa excelência” , aconteceu na madrugada do dia 2 de abril de 1964. Com os militares golpistas à porta do congresso, o senador Auro Moura Andrade anunciou que João Goulart não era mais presidente do Brasil, pois havia se refugiado fora do país e que, “assim sendo, declaro vaga a presidência da República”. Imediatamente, a presidência do Brasil foi assumida pelo deputado Ranieri Mazzilli, que presidia a Câmara. Jango, na verdade, estava em Porto Alegre com o Brizola. Ao ver a manobra do colega, o então deputado Tancredo Neves reagiu e gritou “Canalha! Canalha! Canalha!”.
Hoje em dia, canalha nem é tão ofensivo assim. Mas continua sendo utilizado. O deputado federal Eduardo Bolsonaro chamou o governador Dória de canalha, assim como o Ciro Gomes disse que o Bolsonaro é um canalha. A quantidade de palavrões nas casas legislativas só perde para reunião ministerial do governo Bolsonaro. No vídeo divulgado da reunião do dia 22 de abril, um encontro de apenas 2 horas, foram 39 palavrões. Só o presidente brindou a plateia com 29 deles, principalmente para atacar governadores e impor autoridade frente aos seus ministros. Foram 12 porra, 7 bosta, 5 merda, 5 foder, 4 putaria, 2 puta que o pariu, 2 filho da puta, 1 cacete e 1 caralho.
Outro dia, ao participar de uma conferência, o vice Mourão tinha uma plaquinha de identificação à sua frente. Lá estava: Vice-Presidente da República General Hamilton Mourão. Qual a razão do “general”? Assim, a plaquinha da Damares deveria constar Pastora Evangélica, e a do Ernesto Araújo, Bobo da Corte. Ou, para não criar melindres, a identificação poderia ser, como utilizado na revolução francesa, cidadão tal, cidadã tal. Mas, general? General (ou capitão, almirante, sargento) no governo não é general, é político. O ministro interino da saúde é um político e não general. No entanto, trata a coisa pública como se estivesse comandando uma tropa. O que não deixa de fazer sentido, já que ele empregou um pelotão no ministério.
A questão é a dificuldade e estranheza das armas com o poder civil. Imagine se o título acima fosse “General, você é um canalha”. Eu poderia, como está em uso no momento, ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional e ainda no Código Penal Militar (que também pode indiciar civis). Pois foram nestes dois instrumentos que os militares estão colocando um ministro do Supremo e dois jornalistas. O advogado constitucionalista Almino Afonso Fernandes declarou ao site UOL que o enquadramento é equivocado: “A LSN é totalmente incompatível com o ordenamento jurídico-constitucional vigente, pois afronta os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, consagrado pela sociedade brasileira, em especial ao direito à livre manifestação, à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa. Não é por acaso que muitos analistas a classificam de ‘entulho autoritário’, fruto que é do Regime de exceção e da Ditadura que há tempos foram banidos do nosso convívio”.
Como políticos, eles precisam aprender – e ter a humildade para tanto – que qualquer ocupante de cargo público está sujeito a críticas, mesmo que exageradas ou insultuosas. O que não é o caso do ministro do Supremo, pois ele não afirmou que o Exército está promovendo genocídio. E, no tocante aos jornalistas, é a livre expressão de opinião. Se os militares desejam desenferrujar a Lei de Segurança Nacional, por que não a utilizar com aqueles que, em praça pública, pregam o fechamento do Congresso e do Supremo? Como o uso do cachimbo faz a boca torta, a draconiana LSN poderá, em breve, ser acionada pelos (muitos) políticos-generais de plantão para calar os jornalistas que não dizem amém. O próprio presidente já falou que a imprensa vai acabar. Em agosto do ano passado, ele disse que a “imprensa está acabando como acabou a profissão de datilógrafo, estamos em uma nova era”. Vale lembrar a antológica frase do filósofo e humorista Millôr Fernandes: “Jornal é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
Tudo indica que os militares estão gostando de participar de governo, mesmo de um governo como o do Bolsonaro. O que as Forças Armadas podem certeza é que a história irá registrar sua responsabilidade e cumplicidade no que está acontecendo no Brasil. Não são poucos os crimes de ação e omissão. Em entrevista ao portal Congresso em Foco, o autor da biografia “Castello – a marcha para a ditadura”, Lira Neto, faz uma analogia entre a participação dos militares de 1964 com os atuais: “Como todo ciclo, ele será passageiro. Mas a intensidade e a duração de seus efeitos vai depender de nossa capacidade de saber reagir de forma efetiva ao avanço do obscurantismo, de não nos deixar apanhar na armadilha das bombas semióticas, de não cair nas táticas diversionistas postas em ação por ministros toscos e provocadores, que agem como bufões e bobos da corte para encobrir aquilo que realmente está em jogo: um perverso projeto de desmanche social e econômico de todo um país”.
#
Sobre xingamentos. Na época pré-revolução (prerrevoluçao?) eram mais sutis, espirituosos até. Carlos Lacerda (dito O Corvo)discursava, ameaçava. Algum deputado o interrompeu: “Vossa Excelência é um purgante!” recebendo a resposta de imediato : “E V.Exa. é o resultado dele!” Grandíssimo orador, não deixava nada por menos.
CurtirCurtido por 1 pessoa