
Outro dia coloquei à disposição dos leitores do Blog do Conde uma novela policial de autoria de um brasileiro, Carlos Vianna, que vive a 32 anos em Lisboa. A obra é excepcional e merece a nossa leitura atenta. Tanto pela bem elaborada trama como pelas denúncias do trabalho escravo nas colheitas agrícolas. Em sua obra, Carlos utiliza expressões do português falado em Portugal.
Foi aí que lembrei de uma música que está no disco “Velô”, de 1984. A canção chama-se “Língua”, letra do Caetano Veloso e música de Gilberto Gil. Para mim, é uma das mais importantes obras de Caetano, tendo sido tema de inúmeros estudos linguísticos, mestrados e doutorados.
Pedi ao Beto Vianna, meu filho e linguista, para escrever algumas linhas sobre a letra do grande músico baiano. Assim, logo após apreciarmos a língua do Caetano, segue o comentário enviado pelo Beto.
Língua
Caetano Veloso
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E (xeque-mate) explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet, Moon, de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
E Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(Será que ele está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô
Você e tu
Lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro!
Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
I like to spend some time in Mozambique
Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem
—–
“Língua” não fala sobre língua
Beto Vianna
Linguista – Universidade Federal de Sergipe
Há duas canções do Caê que bem ou mal tratam da língua (ou das línguas, ou das falas, ou das escutas, como a querer desaussuriar e deschomskiar o objeto), em especial a de lustre lusitano: uma é “Quereres”, e a outra, “A outra banda da terra”. Na primeira, Caetano malabariza com o infinitivo pessoal plural em particular, e, em geral, com o esquizofrênico entrelaçamento entre os nossos dizeres e os desejos do outro: um double bind, para usar o conceito do cientista-poeta Gregory Bateson (1979). Na segunda canção, o compositor-soteropolitano (cosmopolitano, então) capricha no erre retroflexo do Brasil profundo caipira para, nessa fonética, congregar Cantuária, Holanda, Canadá e Maputo em “nossa banda da terra”, ou seja, o “Brasil, tá que o pariu”. Sendo eu mesmo linguista por profissão, gostava mais de falar sobre essas duas linguajeiras canções de Caê, mas a missão que me é dada aqui é discorrer sobre outra obra do mesmo cantautor, intitulada (desajeitadamente, a meu ver) “Língua”.
“Língua”, argumento eu, nada tem a ver com língua, no sentido ou referência (Frege, 1892) filológicos do termo. Pois cientificamente, ou, como se dizia em antanho, filosoficamente, não se pode analisar um objeto usando, como objeto de análise, o próprio objeto. Há de se guardar distância pra se ser objetivo. E a poesia de Caetano, talvez como toda poesia, ou como todo Caetano, recusa-se a tomar distância pra chutar a bola da língua. Vamos a um exemplo, para facilitar essa conversa, que já vai ficando demasiado hermética. Se seguirmos os preceitos da própria letra de “Língua” para traduzir, em filosofês, o que se fala da língua, diríamos que das Lied beginnt mit dem Wort “Geschmack” (“Gosto”), Sprache als Zunge, eher ein Teil des Körpers als ein sprachliches Objekt und enthüllt die wahren körperlichen Absichten eines sinnlichistischen Caetano!
De todo modo, sempre se pode achar algo no universo das criações artísticas que interesse a nós, estudiosos dessa superior capacidade humana, que é a fofoca. Em „Língua“, encontramos a alusão caetânica a uma hipótese científica sobre nossas hipóteses ocidentais acerca da comunicação humana, conhecida como „metáfora do tubo“, ou, no original, the conduit metaphor (Reddy, 1979). Segundo a crítica do linguista Michael Reddy, costumamos atribuir à linguagem o poder místico de transmitir ideias de uma cabeça a outra por um canal sonoro (ou gestual, como fazem nosses brothers & sisters surdes), daí a noção de „tubo“. Parece até conversa sobre telepatia ou viagem extrasensorial, e é. Em „Língua“, Caetano refere-se a essa noção terraplanista da língua (vigente nos melhores salões científicos) com o imperativo fático: „Fala, mangueira!“, seguido de um grito primal entoado por Elza Soares. Outro fenômeno residualmente afim aos estudos linguísticos em „Língua“ é a referência a Arrigo Barnabé (talvez não no estudo dos elementos segmentais da fala, mas como uma bioacústica da vanguarda paulista). Com essa, despeço-me caetano e cantando e seguindo ao final da análise da canção.
Aracaju, 5 de novembro de 2020
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