O evangelho segundo Maria Madalena

“Unamos o masculino e o feminino dentro de nós e saiamos a anunciar o Evangelho segundo Maria Madalena” – Papyrus Berolinensis, século V

Arthur Vianna

Na manhã do dia 16 de abril, o grupo contratado pelo doutor Evilásio, advogado dos fazendeiros da região do Sul Amazonense, reuniu-se no Sindicato Rural. O salão parecia pequeno e intimidado com a quantidade de pistoleiros. Havia gente de todos os cantos do Estado. E entre eles, havia de tudo. A promessa do dinheiro despertou desde o motorista de toras a serviço dos madeireiros até engravatados assassinos. À frente, a grande mesa da diretoria contrastava com o ambiente carregado, pois, como se em dia de festa, estava coberta com uma ingênua toalha branca de linho. No centro, apenas duas pessoas: o advogado e o tenente Cardoso, comandante de toda a operação. Mesmo sem qualquer patente, o Cardosão, como também era conhecido, era tratado como ele próprio se intitulava.

Com um gesto, o advogado pediu silêncio e mandou fechar as portas, passando a palavra. O tenente dispensou o microfone, levantou-se e, com dedo em riste e voz mansa, deu sua primeira tarefa:

– É preciso encontrá-la, morta ou viva. Se estiver viva, azar dela. Ela vai aprender com quantos paus se faz uma canoa. E olha que pau é o que não falta entre nós.

Um início de riso foi imediatamente abafado com o barulho das batidas violentas do tenente no microfone. E ele continuou:

– Depois cuidaremos dos outros. Mas a primeira bala tem de ser para a Maria Madalena, a Madá. 

II

Conhecida como Fazenda do Onça, a área ocupada pelos trabalhadores sem terra mede pouco mais de 1.500 hectares. Sua posse é reclamada por um fazendeiro de nome Joaquim Toledo de Mendonça, conhecido como Quincas das Porteiras. O apelido, segundo consta, vem do expediente utilizado pelo ruralista de comprar uma terra e aumentá-la mudando o lugar das porteiras. Ele tentou por diversas vezes regularizar as terras em seu nome e depois em nome de um filho. Os pedidos foram negados, pois a área já está demarcada em um Projeto de Assentamento do INCRA.

Em janeiro de 2009, cerca de 350 famílias ocuparam as terras da Fazenda do Onça, que pertence a União, e desenvolveram o plantio de culturas de subsistência e de hortaliças. Em março, os trabalhadores rurais sem terra conseguiram um trator e começaram o preparo de uma área em torno de 25 hectares.

Ao saber das movimentações dos trabalhadores, o grileiro Quincas das Porteiras promoveu uma reunião com outros fazendeiros da região e mandou um grupo armado dar um aviso: parar imediatamente com o trator ou a expulsão sumária de todas as famílias.

III

Aos quinze anos, Maria Madalena perdeu a mãe. E antes de completar dezesseis, foi a vez do seu pai ser levado pela enchente. Filha mais velha, Madá ficou com os dois irmãozinhos para criar. Procurou ajuda na casa de uma tia, que não via desde criança. Ao chegar no barraco da parente, com um irmão no colo e outro segurando sua saia, ela chorou pela primeira vez. A miséria, que a tinha moldado em pedra, mostrou um quadro ainda mais cruel. 

De volta ao barraco onde nascera, Maria Madalena confiou o menor ao irmãozinho mais velho e decidiu ir em busca de trabalho. Sua casinha, com paredes e telhado de buçu e assoalho de paxiúba, foi construída sobre palanque junto ao rio. Deixou com os meninos um pouco de farinha-d’água, azeite de andiroba para a lâmpada e entrou na canoa prometendo que viria busca-los. 

O velho casco feito pelo pai levou Madá até um povoado próximo de Canutama. No mesmo dia, ela recebeu um convite de trabalho. Teria comida, roupa lavada e uma cama para dividir com quem depositasse um trocado na cômoda da patroa. Recusou e passou a noite numa maromba, uma espécie de curral, junto à igrejinha da vila. Pela manhã, foi encontrada e levada para uma casinha aos fundos do templo. Ao contar que havia deixado seus irmãozinhos e que precisava voltar para pegá-los, os religiosos conseguiram duas canoas e foram até o local indicado pela menina. Com os olhinhos assustados, as crianças pareciam sorrir ao ver a irmã. Do barraco, Madá pegou uns poucos trastes e um livrinho de orações de sua mãe, escrito pelo frei Betto. Ao abraçar seus irmãos, Maria Madalena chorou pela segunda e última vez.

IV

Para uma cidade com pouco mais de 15 mil habitantes, a movimentação dos pistoleiros de aluguel chamou a atenção de todos. Nos primeiros dias, eles podiam ser facilmente identificados nos bares e praças. Os fazendeiros e madeireiros, preocupados com a igual movimentação da Comissão Pastoral da Terra, decidiram enviar os homens para a sede da fazenda, que continuava em poder do grileiro. O clima era tenso em toda a região. Afinal, já se havia assistido a outras matanças.

Três dias depois da reunião no Sindicato Rural, o MST decide convocar uma reunião de emergência na cidade. Foram convidados o juiz da Vara Agrária, um representante do INCRA, o ouvidor agrário, o advogado da Pastoral da Terra e o advogado do fazendeiro, Evilásio Santolho. A reunião terminou do tamanho que começou. Os representantes dos trabalhadores sem terra denunciaram e o advogado afirmou que não havia qualquer evidência de revide armado, apenas “a busca incessante pela justiça e pelo respeito ao direito da propriedade”. O objetivo dos fazendeiros ficou claro, era desmobilizar. No dia seguinte, os jornais, inclusive do sul, noticiaram que tudo caminhava para um acordo entre as partes.

Enquanto, na sede, o tenente Cardozo organizava seus homens e traçava um plano de invasão do acampamento, outra movimentação ocorria do lado dos trabalhadores sem terra. A batalha viria, sabiam todos, mas não deixariam por menos.

V

Aos 17 anos, Madá já mostrava sua capacidade de liderança. Sempre com o incentivo do frei Marcelo, muito ligado aos movimentos sociais da Igreja, ela descia e subia o rio Ituxi em sua pequena canoa para levar leitura e educação às crianças ribeirinhas. Às vezes, levava consigo seus irmãozinhos. Para eles, agora sendo educados pelas freiras dominicanas, era uma festa. Longe de ser uma missionária acomodada, Madá pregava um evangelho diferente. Na algibeira, o “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, além do “Oração na Ação”, que herdou de sua mãe.

Do frei Marcelo, ela recebia não apenas a orientação religiosa baseada na teologia da libertação como também as notícias sobre o trabalho desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra, o MST. Os textos do MST, que chegavam tanto pelos barcos de linha como pelos muitos religiosos que passavam pela região, eram lidos e discutidos entre os membros daquela pequena comunidade rural. Os problemas eram os mesmos, de norte ao sul do Brasil.

Em pouco tempo, Madá passou a ser a referência entre a direção do Movimento e os trabalhadores sem terra da região. Para ela, no entanto, faltava um maior reconhecimento do papel da mulher no MST. O tema já era discutido pelos militantes e vários textos foram produzidos, mas a mulher era sempre referida como membro da família e destacada a sua importância na fixação do homem no campo. Ela passou a viver em um dos acampamentos próximos a Canutama, mas continuou em seu apostolado com as populações pobres ribeirinhas, em especial junto às crianças.

Um dia, ao voltar de suas andanças, frei Marcelo entrega-lhe um envelope. Dentro, um convite para Madá participar do I Encontro Nacional das Mulheres Militantes do MST, a ser realizado em Cajamar, perto de São Paulo, de 19 a 24 de outubro.

VI

A chamada CPI da Grilagem no Amazonas, de 2001, revelou que um terço de todo o Estado era de terras griladas, nada menos do que 55 milhões de hectares. E que os cartórios de Humaitá, Manicoré e Canutama foram identificados como “contumazes na prática de ilícitos registrais”.

Em 2007, por exemplo, o INCRA denunciou o Tribunal de Justiça do Amazonas por beneficiar grileiros condenados pela Justiça Federal. Um dos casos foi o do Seringal São Pedro, em Lábrea (a 700 quilômetros de Manaus), uma posse ilegal de área com 485 mil hectares. Ou seja, quase 500 mil campos de futebol.

Agora, dois anos depois, lá estavam os mesmos grileiros de sempre. Com seus pistoleiros contratados, sob o comando do tenente Cardoso, o grileiro Joaquim Toledo de Mendonça dava sinal verde para o que ele mesmo considerava “a guerra final contra os posseiros comunistas apaniguados pela Igreja”.

No momento em que o grileiro seguia de avião para o conforto e proteção de sua residência em São Paulo, o tenente ditava as ordens finais do ataque.

– Vamos entrar nas terras do patrão pela noitinha. E só vamos sair de lá quando tudo acabar. Prestem atenção: acabar para mim e para o doutor é não ficar nem um maluvido pra contar história. Se calhar de alguém fugir, vão atrás. Se um de vocês agachar ou se borrar, vai ficar estirado também. Vamos começar com os graúdos, pelo tal coordenador da invasão, o Zé Dias. E a tal da Maria Madalena, que é sustentada pelos padrecos. Vocês viram as fotos e sabem quem é quem. Então, hoje pelas seis horas da tarde todos aqui na frente da sede. Vocês vão receber o dinheiro do doutor advogado antes, e depois não quero ver nenhum de vocês pela redondeza. É escafeder-se mato adentro.

VII

Na madrugada do dia 18 de outubro de 1995, Madá pegou o barco de linha até Lábrea e de lá foi pra Manaus. No aeroporto, recebeu as passagens, um dinheirinho pras despesas e ainda encontrou outras companheiras. Era tanta coisa para conversar que ela nem tomou consciência que era a sua primeira viagem de avião. Em São Paulo, o ônibus ainda aguardou outros voos com mais participantes do Encontro. Com seus 19 anos, Madá era a mais nova da turma. Mas, por outro lado, parecia a mais cheia de ideias.

Desde o recebimento do convite, ela colocou no papel tudo aquilo que gostaria de falar e propor. E não era pouca coisa. O assunto da participação das mulheres no MST precisava mesmo ser muito discutido. Madáaté recortara uma entrevista publicada no jornal Sem Terra de março, com uma garota quase da sua idade, Ivanete Tonin, a Nina. Ela havia participado da primeira ocupação de terra aos 19 anos, ajudou a fundar o movimento no Mato Grosso do Sul, ficou presa por 6 meses e, aos 25, já era uma destacada liderança do MST do Rio Grande do Sul. Com o título “O MST deve lutar também contra o machismo”, Nina dizia que “não queremos ser mais que os homens, queremos ser entendidas enquanto seres diferentes, mas politicamente iguais”. 

E assim também pensava a nossa Madá. Para o encontro, ela preparou um texto consistente, abordando a questão do gênero em uma nova relação dentro do Movimento. Para ela, sem o componente de gênero a luta do MST ficava pela metade.

O Encontro Nacional de Trabalhadoras Rurais reuniu, em Cajamar, militantes do MST de 17 estados do Brasil. Madá foi das mais atuantes. Suas propostas eram lidas e aprovadas pelas companheiras. Entre elas, a realização de grandes mobilizações para assegurar os direitos adquiridos, então ameaçados pela proposta do governo de reformular a Previdência. Madá ainda propôs uma ampla campanha pela documentação de todas as camponesas para que pudessem ser reconhecidas enquanto trabalhadoras.

Ao final dos debates, Madá participou da redação do documento final do encontro, que serviu de base para uma ampla discussão e modificação nas relações dentro e fora do Movimento. Assim surgiu a primeira cartilha organizada pelo Coletivo Nacional de Mulheres. Sob o título “A questão da mulher no MST”, foi apresentado um plano de trabalho para enfrentar a discriminação nos acampamentos e assentamentos e a necessidade de uma estrutura que possibilite sua participação. Foi com o vasto material nascido naquele encontro que, finalmente, as mulheres do MST passaram de “acompanhante” à companheira de luta.

VIII

Na sua mansão da Rua Canadá, em São Paulo, Quincas das Porteiras se preparava para assistir, com sua mulher e filhos, a série Tudo Novo de Novo, transmitida pela Rede Globo com Júlia Lemmertz e Marco Ricca nos papeis principais. 

Naquela mesma sexta-feira, 17 de abril de 2009, distante 3.300 quilômetros da capital paulista, os pistoleiros de aluguel, comandados pelo tenente Cardozo entram na área ocupada pelas famílias de trabalhadores sem terra. A maioria já estava em casa com seus filhos. Sem televisão nem rádio, apenas as candeias de azeite puderam iluminar a tragédia. Nem as verduras foram poupadas.

Quando o sol raiou, a polícia chegou ao assentamento. Alguns, que conseguiram fugir pela mata, voltavam para acudir os feridos e chorar seus mortos. Com todos os barracos destruídos, foram assassinados 21 trabalhadores, sendo oito mulheres e quatro crianças. Entre eles, o coordenador Zé Dias.

De Madá ninguém deu notícia. Não estava entre aqueles que escaparam. Mas também não encontraram seu corpo. Naquele dia, ela completaria 33 anos. 

Maria Madalena continua, até hoje, jurada de morte.

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Publicado por blogdocondearthur

Publicitário, jornalista e escritor

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