“Entre Aspas”

Querido Fidel,

       Nesta data de seu nascimento, quando completaria 94 anos, sinto muitas saudades de nossas conversas. E, sobretudo, a falta de sua luminosa inteligência para nos guiar nessa nova conjuntura pandêmica.

       A vida e a história são cheias de imprevistos. Com tantos atentados preparados pela CIA para assassiná-lo, quem diria que você passaria ao outro lado da vida tranquilamente na cama, cercado por pessoas queridas e celebrado por seu amado povo cubano? Quem diria que, sem que fosse disparado um único tiro, a União Soviética se desintegraria em 1991? Quem diria que os EE.UU. teriam um presidente negro e, a Igreja Católica, um progressista papa argentino?

       Em conversas em sua casa, várias vezes você me falou da séria ameaça de uma guerra nuclear. Esse risco perdura. Mas quem diria que, neste ano, o mundo cessaria o seu giro devido a um invisível vírus conhecido por Covid-19?

       Nossa querida Cuba, Fidel, reagiu à pandemia com o heroico esforço que somou atitudes corretas do povo, dos profissionais da saúde e do governo. Comparada a outros países, poucas vidas se perderam, graças às medidas tomadas e acatadas pela população. E no espírito internacionalista e solidário que sempre marcou a história da Revolução, brigadas de Saúde se deslocaram para socorrer povos de dezenas de países.

       O vírus expôs, como nunca, as vísceras podres do capitalismo, a abissal desigualdade social, a suprema contradição entre um sistema que produz admiráveis avanços tecnológicos mas não é capaz de evitar que a humanidade seja afetada por um simples vírus.

       Agradeço a Deus o dom de sua vida, Fidel. Aqui prosseguimos na responsabilidade de sermos fiéis ao seu legado e dignos de seu exemplo de vida e de luta.

       Venceremos, Comandante!

       Fraternalmente

       Frei Betto

13/08/2020

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Carta ao Povo de Deus:

“Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.

Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.

É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.

O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.

Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.

É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).

Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.

O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.

O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.

No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.

Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?

O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.

Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).

Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós. O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26)”.

O texto é assinado por 152 bispos do Brasil, entre os quais o arcebispo emérito de São Paulo, dom Claudio Hummes, pelo bispo emérito de Blumenau, dom Angélico Sandalo Bernardino, pelo bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), dom Edson Taschetto Damian, pelo arcebispo de Belém (PA), dom Alberto Taveira Corrêa, pelo bispo prelado emérito do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, pelo bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG), dom Joaquim Giovani Mol, e pelo arcebispo de Manaus (AM) e ex-secretário-geral da CNBB dom Leonardi Ulrich.

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Sindicatos de trabalhadores na saúde denunciam Bolsonaro por genocídio e crime contra humanidade ao Tribunal Penal Internacional, em Haia.

UOL Notícias (26/07/2020)

O presidente Jair Bolsonaro é denunciado por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. A iniciativa, protocolada na noite deste domingo, está sendo liderada por uma coalizão que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil e apoiado por entidades internacionais.

A Rede Sindical Brasileira UNISaúde acusa o presidente de “falhas graves e mortais” na condução da resposta à pandemia de covid-19. “No entendimento da coalizão, há indícios de que Bolsonaro tenha cometido crime contra a humanidade durante sua gestão frente à pandemia, ao adotar ações negligentes e irresponsáveis, que contribuíram para as mais de 80 mil mortes pela doença no país”, destacam.

Enquanto uma decisão é aguardada, porém, a ofensiva internacional se transforma em mais um capítulo de um abalo contra o governo. Nos últimos meses, as denúncias em diferentes fóruns internacionais se transformaram no “novo normal” para a diplomacia brasileira. Apenas em 2019, foram mais de 35 queixas apresentadas formalmente à ONU.

No caso do Tribunal, porém, a denúncia vem dos sindicatos de profissionais de saúde, que consideram que existe “dolo” e “intenção na postura do presidente, quando adota medidas que ferem os direitos humanos e desprotegem a população, colocando-a em situação de risco em larga escala, especialmente os grupos étnicos vulneráveis”.

No documento de 64 páginas submetido à procuradora-geral do Tribunal, Fatou Bensouda, as entidades denunciam uma atitude de “menosprezo, descaso, negacionismo” e que “trouxe consequências desastrosas, com consequente crescimento da disseminação, total estrangulamento dos serviços de saúde, que se viu sem as mínimas condições de prestar assistência às populações, advindo disso, mortes sem mais controles”. “A omissão do governo brasileiro caracteriza crime contra a humanidade – genocídio”, diz o texto. “É urgente a abertura de procedimento investigatório junto a esse Tribunal Penal Internacional, para evitar que, dos 210 milhões de brasileiros, uma parcela sofra as consequências desastrosas dos atos irresponsáveis do senhor Presidente da República”, apontam.

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CARTA AOS AMIGOS E AMIGAS DO EXTERIOR

Frei Betto

       Queridos amigos e amigas:

       No Brasil ocorre um genocídio! No momento em que escrevo, 16/7, a Covid-19, surgida aqui em fevereiro deste ano, já matou 76 mil pessoas. Já são quase 2 milhões de infectados. Até domingo, 19/7, chegaremos a 80 mil vítimas fatais. É possível que agora, ao você ler este apelo dramático, já cheguem a 100 mil.

       Quando lembro que na guerra do Vietnã, ao longo de 20 anos, 58 mil vidas de militares usamericanos foram sacrificadas, tenho o alcance da gravidade do que ocorre em meu país. Esse horror causa indignação e revolta. E todos sabemos que medidas de precaução e restrição, adotadas em tantos outros países, poderiam ter evitado tamanha mortandade.

       Esse genocídio não resulta da indiferença do governo Bolsonaro. É intencional. Bolsonaro se compraz da morte alheia. Quando deputado federal, em entrevista à TV, em 1999, ele declarou: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil”.

       Ao votar a favor do impeachment da presidente Dilma, ofertou seu voto à memória do mais notório torturador do Exército, o coronel Brilhante Ustra.

       Por ser tão obcecado pela morte, uma de suas principais políticas de governo é a liberação do comércio de armas e munições. Questionado à porta do palácio presidencial se não se importava com as vítimas da pandemia, respondeu: “Não estou acreditando nesses números” (27/3, 92 mortes); “Todos nós iremos morrer um dia” (29/3, 136 mortes); “E daí? Quer que eu faça o quê?” (28/4, 5.017 mortes).

       Por que essa política necrófila? Desde o início ele declarou que o importante não era salvar vidas, e sim a economia. Daí sua recusa em decretar lockdown, acatar as orientações da OMS e importar respiradores e equipamentos de proteção individual. Foi preciso a Suprema Corte delegar essa responsabilidade a governadores e prefeitos.

       Bolsonaro sequer respeitou a autoridade de seus próprios ministros da Saúde. Desde fevereiro o Brasil teve dois, ambos demitidos por se recusarem a adotar a mesma atitude do presidente. Agora, à frente do ministério, está o general Pazuello, que nada entende de questão sanitária; tentou ocultar os dados sobre a  evolução dos números de vítimas do coronavírus; empregou 38 militares em funções importantes do ministério, sem a requerida qualificação; e cancelou as entrevistas diárias pelas quais a população recebia orientação.

       Seria exaustivo enumerar aqui quantas medidas de liberação de recursos para socorro das vítimas e das famílias de baixa renda (mais de 100 milhões de brasileiros) jamais foram efetivadas.

       As razões da intencionalidade criminosa do governo Bolsonaro são evidentes. Deixar morrer os idosos, para economizar recursos da Previdência Social. Deixar morrer os portadores de doenças preexistentes, para economizar recursos do SUS, o sistema nacional de saúde. Deixar morrer os pobres, para economizar recursos do Bolsa Família e de outros programas sociais destinados aos 52,5 milhões de brasileiros que vivem na pobreza e aos 13,5 milhões que se encontram na extrema pobreza. (Dados do governo federal).

       Não satisfeito com tais medidas letais, agora o presidente vetou, no projeto de lei sancionado a 3/7, o trecho que obrigava o uso de máscaras em estabelecimentos comerciais, templos religiosos e instituições de ensino. Vetou também a imposição de multas para quem descumprir as regras e a obrigação do governo de distribuir máscaras para os mais pobres, principais vítimas da Covid-19, e aos presos (750 mil). Esses vetos, no entanto, não anulam legislações locais que já estabelecem a obrigatoriedade do uso de máscara.

       Em 8/7, Bolsonaro derrubou trechos da lei, aprovada pelo Senado, que obrigavam o governo a fornecer água potável e materiais de higiene e limpeza, instalação de internet e distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas, para aldeias indígenas. Vetou também verba emergencial destinada à saúde indígena, bem como facilitar o acesso de indígenas e quilombolas ao auxílio emergencial de 600 reais (100 euros ou 120 dólares) por três meses. Vetou ainda a obrigação de o governo oferecer mais leitos hospitalares, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea a povos indígenas e quilombolas.

       Indígenas e quilombolas têm sido dizimados pela crescente devastação socioambiental, em especial na Amazônia.

       Por favor, divulguem ao máximo esse crime de lesa-humanidade. É preciso que as denúncias do que ocorre no Brasil cheguem à mídia de seu país, às redes digitais, ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, e ao Tribunal Internacional de Haia, bem como aos bancos e empresas que abrigam investidores tão cobiçados pelo governo Bolsonaro.

       Muito antes de o jornal The Economist fazê-lo, nas redes digitais trato o presidente por BolsoNero – enquanto Roma arde em chamas, ele toca lira e faz propaganda da cloroquina, remédio sem nenhuma eficácia científica contra o novo coronavírus. Porém, seus fabricantes são aliados políticos do presidente…

       Agradeço seu solidário interesse em divulgar esta carta. Só a pressão vinda do exterior será capaz de deter o genocídio que assola o nosso querido e maravilhoso Brasil.

       Fraternalmente,

       Frei Betto

Frei Betto é frade dominicano e escritor, assessor da FAO e de movimentos sociais.

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A bolsa da linguagem

Por FLAVIO AGUIAR

As cotações mutáveis das palavras “capitão”, “médico”, “doutor”, “filósofo”, “jornalista”, “juiz”, “presidente”

Terão as palavras ações na bolsa da linguagem? Claro que sim! E sobem e descem nas cotações ao sabor da disposição dos investidores, também dos insumos que recebem e das vantagens colaterais que propiciam. É claro que há multidisciplinaridade nisto: a cotação de uma pode baixar aqui e subir ali. Portanto leia-se o que se segue com a cautela necessária. Trata-se da opinião apenas de um dos muitos analistas deste mercado tão inseguro quando as demais bolsas de valores do mundo. Não compre nem venda palavras, nem as ponha na gaveta dos ativos ou no seu arquivo morto, com base apenas nas minhas opiniões. Consulte mais, leia outros comentários, e depois tire suas próprias conclusões. Neste caso aqui tratado, trato de palavras que estão oscilando para baixo em meu conceito, embora possam, eventualmente, render bons dividendos e investimentos offshore, em algum outro recanto do globo. Vamos a elas.

Capitão

Decididamente, é uma palavra que despenca na bolsa. Antigamente, “Capitão” tinha uma aura de nobreza. Vou dar alguns exemplos. Nos longínquos tempos das Guerras Missioneiras, dos Guaranis contra Portugueses e Espanhóis, quem liderava os indígenas era o “Capitão Sepé”, corregedor e cacique da Missão de São Miguel. Tanto prestígio tinha que depois de sua morte em combate, virou santo popular (São Sepé, nome de município no Rio Grande do Sul), integrante do Panteão dos Heróis Nacionais em Brasília, personagem legendário de poemas (“O lunar de Sepé”), lendas, canções, romances, etc.

No mesmo estado apareceria, na literatura, o Capitão Rodrigo Cambará, ainda que beberrão pai de família descuidado, mas valente, leal e corajoso como o quê, cercado por uma aura libertária. Mais tarde viraria astro de cinema e televisão, emprestando sua aura para o prestígio de gente como Tarcísio Meira e Francisco di Franco.

Também gaúcho, mas transformado em herói de exportação nacional e internacional, veio o Capitão Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Tamanho prestígio teve ele que a histórica coluna foi batizada com o seu nome, ao invés de Miguel Costa, embora formalmente, pelo menos de início, este oficial fosse o seu comandante. A meninada esperta do romance de Jorge Amado ganhou o nome de “Capitães da Areia” (1937), que também foi parar no cinema. Houve ainda o Capitão Carlos Lamarca, heroico e infeliz guerrilheiro dos anos 60 e 70, literalmente caçado e assassinado no sertão da Bahia. Também migrou para o cinema, emprestando o prestígio (contestado pela direita) de seu nome ao ator Paulo Betti por duas vezes.

A palavra “Capitão” deve seu prestígio a sua associação com o conceito de “personagem de ação”, junto da tropa, ao contrário de “Coronel”, de prestígio institucional durante o Império e mesmo depois, associada ao exercício de um poder discricionário e despótico, e mesmo de “General”. “General” teve ainda seu prestígio arranhado porque alguns dos portadores desta patente se alçaram a “Generalíssimo”, como Deodoro, nome de rua em Belém do Pará, embora fosse Marechal, além do detestável Generalíssimo Francisco Franco, aliás Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco y Bahamonde Salgado Pardo, o pobre.

Quando o poeta cubano quis homenagear o camarada Joseph Djugashvili, aliás, Koba, chamou seu poema de “Stalin, Capitán”, publicado em 1942.

Dentre as palavras da baixa patente militar, “Sargento” ainda tem uma aura de simpatia, mais do que de prestígio, devido a obras como “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antonio de Almeida. Entretanto o “Sargento Getúlio”, de João Ubaldo Ribeiro, focalizando um personagem violento e algo destemperado, talvez tenha arranhado aquela imagem simpática.

“Cabo” entrou em baixa devido ao Cabo Anselmo, que além de informante e agente da repressão, tornou-se traidor e nesta condição cúmplice do assassinato até mesmo de sua companheira de amores.

A única palavra que rivalizava com “Capitão” era “Tenente”. Tanto é assim que, pedindo licença, confesso que chamei o personagem Costa, que luta ao lado de Garibaldi e Anita, no romance que leva o nome desta, de “Tenente da Cavalaria de Libertos” do Exército da República Riograndense, vulgarmente conhecida como “de Piratini”. Lembro ainda que na Revolução Farroupilha Garibaldi tinha o posto de “Capitão-tenente da Marinha Riograndense”, que se resumia a três barcos.

Pois bem, graças a Bolsonaro, “Capitão” é uma palavra decididamente em baixa. Vem se tornando sinônimo de “tosco”, “bruto”, autoritário”, “covarde”, “garoto propaganda de cloroquina” e, por semelhança, até mesmo de “Capetão”. Está mais próxima do antigo “Capitão do Mato”, caçador de escravos fugidos, do que daqueles valentes acima lembrados. Vai ser necessário todo um exército de novos capitães para recuperar o seu prestígio ferido e rasgado.

Médico

Outro termo que está em baixa nas cotações brasileiras, mas oscila no plano mundial. Na tradição antiga, “médico” era palavra associada em geral à “dedicação”, “racionalidade”, “lucidez” e coisas assim. No plano nacional, lembro do “dr. Seixas”, personagem do ciclo urbano dos romances de Erico Veríssimo: secarrão, algo sarcástico, pessimista, mas generoso e dedicado a seus pacientes, sobretudo os mais pobres, embora a todos atendesse por igual.

Sem dúvida, ele deve sua existência ao jovem Andrew Manson, nobre e dedicado médico do romance “A cidadela” do escritor escocês A. J.Cronin, ele mesmo também médico. No correr do romance Manson se corrompe, abandonando seus princípios, mas a eles retorna ao final. Consta que o romance de A. J. Cronin foi um dos elementos responsáveis pela construção do National Health System do Reino Unido, que já foi um dos melhores da Europa, antes de ser demolido pela heroína dos mercados, Margareth Thatcher, com resultados nefastos que se veem hoje na debacle inicial do tratamento da pandemia nas terras governadas by appointment of Her Majesty, the Queen.

A trajetória de Manson certamente influiu na de Eugënio Fontes, o jovem médico do romance “Olhai os lírios do campo”, de Erico Veríssimo. Também ele se corrompe, mas recupera seus bons valores ao final, tornando-se amigo do dr. Seixas.

Além do concurso dos personagens médicos, também contribuiu para o prestígio destes profissionais a quantidade de médicos que se tornaram escritores, dentre eles Moacyr Scliar, Pedro Nava, Guimarães Rosa, seguindo uma tradição mundial que remonta a São Lucas, o evangelista que é o padroeiro da categoria. Tamanho era o prestígio do setor que nem a presença de médicos que auxiliavam os torturadores dos porões policiais brasileiros, hoje tão valorizados pelo “Capetão” e seus expoentes, conseguiu desprestigia-lo.

Pois bem, agora a coisa está um pouco complicada. A atuação feroz de associações corporativas contra o programa “Mais Médicos” toldou o prestígio. As imagens de jovens médicos atacando os médicos cubanos, chamando-os de “escravos”, enquanto usavam ostensivamente seus jalecos brancos, arranharam bastante aquele prestígio de generosidade e solidariedade.

Porém no plano internacional, os médicos cubanos, espalhados pelo mundo, defendem o prestígio da categoria com denodo e valor, havendo quem sugira o Prêmio Nobel da Paz para eles. A ver o que acontece.

Doutor

Vou relatar um caso pessoal sobre o prestígio da palavra. Durante 11 anos morei num condomínio da Vila Indiana, distrito do Butantã, ao lado da Cidade Universitária, em São Paulo. Os funcionários do conjunto residencial me chamavam de “Professor”. E eu me orgulhava. Achava aquilo o máximo do prestígio.

Certo dia fui incumbido de ser o mestre-de-cerimônias de uma homenagem ao professor Antonio Candido, no antigo prédio da também antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia. Nossa, pensei, preciso me vestir à altura do acontecimento. Ganhei de presente de minha então namorada um terno de giz, cinzento, com colete e tudo, a que nenhum Al Capone poria defeito. Comprei um sapato preto de verniz, uma camisa impecavelmente nova e uma gravata preta digna de elogios. Assim enfarpelado, ao entardecer, me preparei para sair para a Maria Antônia, como era chamada, por metonímia da rua, a antiga Faculdade. Ao passar pela portaria, o funcionário presente me cumprimentou: “Boa noite, Doutor”. Eu fora promovido. Não precisa comentar, não é mesmo?

Historicamente, o significado do termo “doutor” oscilou entre dois extremos. Em latim, língua-mãe da nossa, o doctorequivalia ao sentido de “mestre”, “preceptor”. Tornou-se comenda máxima de distinção durante a Idade Média europeia, prestígio multiplicado pelo surgimento das Universidades. Tornar-se “doutor” era de tal distinção que em várias universidades, como em Paris, a concessão do título era comemorada com missa especial e o direito ao uso de roupas específicas, como um manto vermelho ou preto e até um chapéu próprio, como na Alemanha.

No outro extremo da escala de valores estava o dottore, personagem da Commedia del’Arte italiana, um tipo enfatuado, falso erudito beirando o charlatanismo, dono de um discurso chato e grotesco. Este tipo entrou na nossa comédia brasileira do século XIX através de personagens pedantes, afrancesados, imitadores de mau gosto de tudo o que lhes parecia europeu (leia-se, francês ou quando muito inglês). Entretanto, este jogo pendular não anulou o prestígio da palavra entre nós.

Desconfio que este prestígio cresceu com o surgimento das primeiras escolas de ensino superior no Brasil, de Medicina, Direito e Engenharia (Politécnica). Nestas escolas havia, por vezes, a exigência de que, para diplomar-se no que hoje chamamos de “graduação”, o estudante tinha de apresentar uma tese e defende-la perante uma banca.

Juntando a autoridade do conhecimento e do diploma acadêmico à distinção de classe (seja pela origem familiar ou pela ascensão social) o termo “doutor” passou a equivaler, no mundo urbano, ao significado do termo “coronel” no mundo rural. Passou a ser quase sinônimo de “autoridade” – como no caso dos médicos, por exemplo – e, por extensão, recobriu com seu sentido a posição de superioridade social. A palavra passou a ser usada pelo mais humilde em relação àquele em quem reconhecia posição de mando, inclusive no caso de delegados de polícia. E em geral, esta condição de superioridade traduzia-se na vestimenta.

Para o povo em geral, paletó, gravata e sapato fino são adereços de domingo, dia de festa, casamento, batizado ou enterro. Para o mandante urbano – empresário ou homem de governo – o traje formal passou a ser seu uniforme de trabalho, equivalente à batina do padre, à toga do juiz e à farda do militar. Assim o cumprimento que recebi ao sair do prédio enfarpelado para a homenagem ao professor Antonio Candido enquadra-se nesta longa romaria de significados que remonta ao antigo latim erudito.

Pois bem, penso que hoje o termo “doutor” está em baixa, ainda que relativa. Primeiro, porque o mundo acadêmico, com seus mestrados, doutorados, pós-doutorados, livre-docências, etc., está sob ataque generalizado. Este ataque provêm da maré montante de ignorância autossatisfeita que cresce no mundo inteiro, sob a liderança de gente como Trump, nos Estados Unidos, Viktor Orban, Matteo Salvini, o polonês Duda e o lado conservador da Igreja católica na Europa, Bolsonaro, Ernesto Araujo, Malafaia, Edir Macedo et alii no Brasil, e ainda Steve Bannon e Olavo de Carvalho à solta pelo mundo. Não raro, a autoridade dada pelo conhecimento se vê atropelada, inclusive em relação à saúde, pelo autoritarismo sedutor e redutor do pastor ignorante. Sublinho o ignorante, porque é claro que nem todo pastor de igreja é autoritário, nem ignorante; assim como as “relações” no romance antigo, as generalizações podem ser muito perigosas, e levar também ao encanto da ignorância autossatisfeita. Qualquer um pode se tornar o dottore da antiga comédia.

O desdém pela autoridade acadêmica tem tradição também antiga entre nós. Não precisamos ir muito longe. Desde o começo de minha vida profissional trabalhei, simultaneamente, no mundo universitário e no jornalismo. Lá pelos idos dos anos sessenta e setenta, quando, no mundo jornalístico, se queria qualificar um texto como excessivamente longo, pedante, chato, se dizia que ele era “acadêmico”. Em contrapartida, no mundo universitário, quando se queria dizer que um texto era superficial, leviano, inócuo, se dizia que ele era “jornalístico”. Muita bordoada levei de ambos os lados desta polaridade pelo convívio de meus pés com ambos os barcos à deriva nesta nossa correnteza (será esta minha metáfora “acadêmica” ou “jornalística”? Vá se saber!).

Ultimamente o termo “doutor” sofreu uma estocada mortal que, se não o matou definitivamente, levou-o ao leito de alguma UTI da linguagem. Refiro-me ao “episódio Decotelli”. Não adianta tapar o caso com a peneira que se queira, dizendo que Decotelli foi prejudicado pelo racismo à brasileira, ou que se tratou de um “mal entendido”, etc. Decotelli picareteou o próprio currículo, esta é a questão, e o resto é silêncio. Aparentemente, seu caso confirmou o prestígio da palavra “doutor”, pois grudou-a no currículo, inclusive com o prefixo “pós”, de maneira inconsistente, ou mentirosa, para valorizar-se. Mas no fundo ele deu uma contribuição para afunda-la mais ainda neste mar de ignorância em ebulição, comprovando como se pode manipula-la durante tanto tempo e em voo tão alto quanto o de um pretendido ministério.

Bom, depois de uma dança das cadeiras, o referido ministério acabou cedido, pelo menos de momento, a um pastor que me parece fundamentalistamente retrógrado, mas que tem doutorado. Vamos ver no que isto vai dar, se a palavra “doutor” vai sobreviver, e como.

Filósofo

Decididamente em baixa. De “amante da sabedoria” passou a designar “guru inimigo da inteligência”, “terraplanista de araque”, “astrólogo picareta e fanfarrão”. Sem mais comentários. Venda suas ações enquanto é tempo. E não volte a comprar algo no setor, até que ele seja saneado.

Chanceler brasileiro

Idem. De “melhor diplomata do mundo”, a expressão passou a significar “pessoa que acredita no milagre de Ourique, que o vírus da pandemia é de fato chinês e que um falastrão na Casa Branca é o verdadeiro pilar da democracia no mundo”. Melhor não investir. Ou então vá investir na Alemanha. Neste caso, retorno garantido, pelo menos por ora.

Jornalista

Palavra cujas ações permanecem abertas a todos os investimentos possíveis, sobretudo na conta dos detentores do título, na mídia convencional. É palavra de sóbria tradição, tendo ocupado o trend de nomes como Macedo, Alencar, Machado, Barreto, Andrade (vários), Braga e Silveira, Francis (à esquerda e depois à direita), etc. etc. etc. Hoje suas ações oscilam mais que vara de juiz. O valor depende do titular à venda: E. Massa Cheirosa Castanheira, Mirtes Porcão, Mercal Pirambeira, etc., e também de acordo com o fundo que representam: Globúsculo, Estadinho, Folha Provinciana, et alii. Se quiser investir nestas ações, aja rápido: compre e venda em seguida na alta, pois como estes titulares estão sempre à venda, e por valores merrecais, as ações podem cair de imediato no limbo ou no inferno.

Juiz

Já se foi o tempo em que, num jogo de futebol, mais importante do que o juiz era a mãe do juiz. No vocabulário atual a palavra “juiz” abandonou de vez os estádios. No passado recente a cotação da palavra passou por uma alta vertiginosa quando a mídia tradicional deu apoio ilimitado aos mandos e desmandos da Operação Lava Jato e às arbitrariedades cometidas pelo juiz Sérgio Moro. Na verdade esta valorização no mercado começara antes, com o empenho feroz do juiz Joaquim Barbosa contra o PT graças ao tema do “Mensalão”, coisa que, no dirimir das dúvidas, jamais ficou comprovada. Nos últimos tempos a palavra vem demonstrando oscilações perigosas para os investidores, que devem agir com cautela em seu entorno. A fase se abriu com as revelações do site The Intercept sobre os bastidores da Lava Jato e de seus aloprados procuradores e do juiz Moro. Também comprometeu o valor das ações da palavra a própria ação do juiz Moro, aceitando a prebenda (ou seria sinecura?) de sua nomeação para o ministério da Justiça no governo que ajudou ostensivamente a eleger, roubando no jogo do lawfare contra Lula. Para complicar tudo mais ainda, o referido juiz ficou entre a cruz de sua cumplicidade com as loucuras ilegais do presidente que o recompensara, e a caldeirinha em que foi pouco a pouco fritado, até sua patética e apatetada renúncia – ou demissão, tanto faz – motivada pela disposição do mandatário para intervir no comando da Polícia Federal. Outros fatores ajudaram a empurrar a palavra para as cordas, mostrando que juízes e procuradores também aceitavam gordas esmolas, como a de receber auxílio moradia para se estabelecer em cidades onde dispunham de imóveis próprios. Para completar esta progressiva perda de valor, um juiz criou a figura notável da “fuga premiada”, concedendo prisão domiciliar a pessoas foragidas da justiça, a pretexto de cuidar do marido que fora igualmente remetido para seu domicílio, convertido em presídio de ocasião. Ambos, marido e mulher, estão agora no conforto de uma “rachadinha domiciliar”. Juízes do Supremo, depois de alguns deles ser coniventes com a avacalhação da palavra durante a perseguição ao ex-presidente Lula no agora definido pelo próprio juiz Moro como o “ringue da Lava Jato”, se esmeram no momento para recuperar o valor destas ações tentando conter as pirotecnias piromaníacas do governo Bolsonaro. A empresa é difícil, mas quem sabe? Tudo pode acontecer nos quadrantes do quartel dos Abrantes – expressão adequada para definir nossos novos tempos governamentais.

Presidente

Esta é uma palavra que exige a maior cautela e a mais precavida precaução por parte dos investidores, sobretudo aqueles preocupados com o mercado de futuros. No momento, ela atrai cada vez menos investidores tanto por parte dos da alta finança quanto por parte dos pertencentes às camadas médias, que durante o ano passado apostaram pesado nela. Por parte destes setores ela sofrera, antes, uma intensa desvalorização quando passou a ter como o principal de seus assets a figura – para eles esdrúxula e extemporânea – de uma mulher. Preferiam investir nela (na palavra, não na mulher) quando condecorava o peito de quem já conduzia na ombreira o capital de quatro estrelas. Era ganho líquido e certo, até chegar o imprevisível domador de cavalos, que a sepultou sob seus cascos. Depois, nos tempos civis, ela sofreu forte oscilação ao decorar o paletó de um maranhense que, assim como a levou aos píncaros com o Plano Cruzado a conduziu ao fundo do poço graças ao mesmo Plano Cruzado. Destino igual teve com seu sucessor imediato, novamente galgando píncaros de início ao prometer caçar marajás para mergulhar nas sombras logo em seguida quando cassou a poupança de todo mundo e terminou se autocassando para não ser cassado e caçado. Seguiu-se nova valorização, graças a alguém que frequentara a Sorbonne, a de Paris, não a facção militar assim conhecida, cujo manager e CEO era o general Castelo Branco. Tinha título nobiliárquico. Mas ele também a conduziu ao desastre, desvalorizando-se com ela, transformando-se, de “Príncipe da Sociologia”, em mero e senil “Barão de Higienópolis”. Passou por nova e brusca valorização com a unção de um torneiro-mecânico, inclusive no plano internacional, embora continuasse a ser vista com desdém por muitos daqueles investidores da pesada.

Agora, como comentado, a palavra se encontra sub judice, em estado de suspensão, não se sabendo se irá para cima, para baixo, para os lados ou se simplesmente implodirá, dando lugar a outra, como “ditador” ou “miliciano”. O tratamento que seu asset de hoje vem dando à pandemia compromete bastante o valor de suas ações. Merece ser enxaguada com cloroquina, para se ver melhor qual será seu futuro.

Pensando bem, talvez seja melhor investir em suas ações na bolsa de passados. Afinal, se há coisa que não falta em metrópole brasileira, com a exceção compreensível de São Paulo, é uma “Avenida Presidente Vargas” ou algum outro, até do estrangeiro, como Kennedy. Há aqueles que valorizariam uma “Avenida Presidente Lula”, mas estes, infelizmente, não costumam investir nas bolsas de valores, por falta de capital de giro, já que quase sempre dançam no giro dos capitais.

  • Flávio Aguiar reside atualmente em Berlim, na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Flávio tem mais de 30 livros e já ganhou por três vezes o prêmio Jabuti, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Flávio é casado com a minha querida amiga Zinka Ziebell, professora de Português Brasileiro na Freie Universität de Berlim.

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Agricultura familiar, a solução para os nossos pepinos 

por Mariana Campos e Rosana Villar para o Greenpeace

Produtores familiares provam que é possível colocar comida na nossa mesa com qualidade e sem veneno 

Você sabe de onde vieram o feijão, a mandioca e o pepino do seu almoço hoje? Provavelmente, de agricultores familiares. E o próximo dia 25 de julho é o dia deles. 

Responsáveis pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros e representando 77% dos empregos da agropecuária do país, eles merecem todas as homenagens. Os dados são da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).

Os agricultores familiares são a maior prova de que é possível produzir comida sem agrotóxicos. Embora nem todo agricultor familiar seja 100% orgânico ou agroecológico, eles são os protagonistas desse tipo de cultivo, que respeita os processos da natureza, evitando impactos negativos na nossa saúde e na do meio ambiente. 

A demanda por alimentos agroecológicos vem crescendo, mas ainda representa muito pouco da nossa produção. Hoje, a agricultura familiar ocupa apenas um quarto das terras usadas para a agricultura no Brasil. Nossos governantes precisam incentivar a produção de alimentos de qualidade, mas insistem em continuar de mãos dadas com um modelo extremamente tóxico: no ano passado, o governo liberou mais 51 agrotóxicos, totalizando 290 substâncias em menos de 8 meses. 

‘Alimentar toda a população sem agrotóxicos’? Eu ouvi direito?

Os ruralistas e outros grupos proprietários de grandes porções de terra no Brasil têm todo o interesse em dizer para você que não dá para cultivar alimentos sem agrotóxicos. Isso porque eles lucram, e muito, defendendo monoculturas entediantes que fazem uso massivo de veneno, consomem muito mais água e esgotam o solo. Mas, enquanto eles enchem seus bolsos de dinheiro, a população se enche de veneno. 

Já nós defendemos uma agricultura que valoriza a biodiversidade e é muito mais cuidadosa com o meio ambiente, a nossa saúde e os trabalhadores do campo. E sim, é possível produzir sem veneno. Com uma transição adequada, que leve em consideração fatores como distribuição, comercialização e consumo, a produção agroecológica é capaz de alimentar todo o planeta

Para que essa transição aconteça, precisamos de políticas públicas. O papel do governo é fundamental, tanto para incentivar os produtores a migrar para formas mais ecológicas de produção, oferecendo subsídios e assistência técnica, quanto para gerar renda e desenvolvimento local. Por exemplo, o governo poderia trocar as absurdas isenções fiscais para agrotóxicos por isenções fiscais para quem produz  orgânicos, e colocar em prática os Programas de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA e PNAE). De modo geral, a solução existe e tem nome: é a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA), que tramita no Congresso.

A agricultura convencional é altamente prejudicial ao planeta e está esgotando os recursos naturais. Se não mudarmos urgentemente para formas mais sustentáveis de produzir nossa comida, entraremos em colapso.

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VÍRUS DO PANDEMÔNIO

Frei Betto

 Será que a nossa maior ameaça de genocídio é a Covid-19? Penso que não. Nossa maior ameaça é o pandemônio. 

        O noticiário brasileiro prioriza o avanço da pandemia e a inoperância dos governos federal, estaduais e municipais. Sucedem-se denúncias de corrupção, como a compra de respiradores superfaturados e desvios de verbas públicas. O que cada um de nós mais teme, inclusive aqueles que, por razões de sobrevivência, são obrigados a não respeitar o confinamento, é contrair o vírus de forma letal.

        Será mesmo que a nossa maior ameaça de genocídio é a Covid-19?

        Penso que não. Nossa maior ameaça não é a pandemia, é o pandemônio. Entre as definições do Grande Dicionário Houaiss, pandemônio é “associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias”.

        O principal mal que, hoje, ameaça a nação brasileira é o governo Bolsonaro, que sofre de tanatomania, obsessão por morte. Uma pessoa que sofre de obsessão fálica em armas, defende a tortura, exalta torturadores e milicianos, com certeza não tem a menor preocupação com o crescente número de vítimas da pandemia, sejam elas 60 mil ou 600 mil. Porque é psicologicamente bloqueada para enxergar o outro. Só consegue ver a si própria e a extensão de si mesma, como os filhos. É a síndrome da despersonalização, transtorno que induz à insensibilidade e faz os sentimentos funcionarem apenas na cabeça, ou seja, raciocina-se sobre eles sem conseguir vivenciá-los.

        Ele que tanto gosta de atirar e se gaba de sua boa pontaria, não tem porque se importar com qualquer onda de letalidade, desde que não o atinja. Já que não pode dar vazão ao seu desejo manifesto de “matar 30 mil”, ele se compraz em ver se multiplicar, diariamente, o número de mortos pela Covid-19.

        Sua única preocupação é que a pandemia afete gravemente a economia e, de quebra, sua possibilidade de reeleição – o que, psicologicamente, pode ser entendido como perpetuação. Ele age como se fosse invulnerável. Se escapou de uma suposta facada, não será um vírus, uma “gripezinha”, que haverá de abatê-lo. Por isso não respeita o confinamento e o isolamento social, sai à rua sem máscara, não evita aglomerações nem se importa com distanciamento pessoal.

        É essa sensação de impunidade e imunidade que deve ter passado pela cabeça de Nero ao ver Roma arder em chamas. Abraçado à sua lira, estava convicto de que o incêndio não chegaria a seu palácio.

        Mais grave que o vírus é esse descaso governamental. Porque, além de milhares de mortos pela pandemia, ele produz vítimas da economia, os 13 milhões de desempregados e os 120 milhões de brasileiros, dentre os 150 milhões maiores de 16 anos, que ganham menos de dois salários mínimos por mês. Isso sem contar aqueles que serão afetados pela recessão provocada pela Covid-19.

        Ele dissemina o espectro da morte simbólica ao liberar a violência policial e o comércio de armas; menosprezar a cultura e o respeito aos direitos humanos; sucatear a educação e favorecer o desmatamento e a invasão de terras indígenas.

        Esse vírus do pandemônio, que habita o Palácio da Alvorada e exerce o seu ofício letal no Planalto, é a mais séria ameaça à democracia e à nação brasileiras.

Site: www.freibetto.org – Assinatura de artigos: mhgpal@gmail.com

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Diante da pandemia e do afastamento social, as mulheres precisaram se reinventar

A mulher brasileira reencontra  sua força, sua raça e se reergue, como numa canção de Milton Nascimento

Hildênia  Marques

Psicóloga, MSc.

Por volta de meados de março, fomos surpreendidos com notícias alarmantes, relacionadas à chegada da pandemia, Covid 19, no Brasil. A velocidade com a qual se alastrou e o número crescente de casos e óbitos são alarmantes.

Sem tempo para nos preparar, estamos tendo que adequar nossa vida, rotina e hábitos a essa nova situação. Com ausência de guerras, tsunamis, terremotos, furacões e outras catástrofes, nunca tínhamos enfrentado um momento de tamanha gravidade: um inimigo silencioso e oculto! 

Neste cenário, nós mulheres, cada uma diante da sua circunstancia pessoal, profissional e familiar, tivemos que nos adaptar ao confinamento, esforçando-nos para que nossa vida seguisse em frente, da melhor maneira possível, assim como a personagem Maria, retratada na canção “Maria Maria”, de Milton Nascimento, inspirada no relato de Fernando Brant, sobre uma mulher que morava a beira dos trilhos e que criava os filhos com muita dificuldade.

Maria, Maria é um dom,

Uma certa magia, 

Uma força que nos alerta

…Uma mistura de dor e alegria…

Malabaristas, nós mulheres das mais diversas camadas sociais, estamos lançando mão de nossa criatividade, persistência, fé e resiliência para continuarmos nossa trajetória.

A crise tem sido implacável, profunda, atingindo todos os segmentos de atividades profissionais, da empresária à vendedora ambulante. Mulheres de faixas sociais menos favorecidas como empregadas domésticas, diaristas, manicures, entre outras, foram atingidas de forma cruel. Vulneráveis aos riscos do transporte coletivo e impedidas de trabalhar, tiveram  seu salário diminuído, perderam seu emprego, ficaram sem nenhuma renda. Nas comunidades, estão sempre presentes no trabalho voluntário. Com escolas fechadas e filhos em casa, muitas delas ainda permanecem sem condições de buscar por outras formas de sustento. Corajosas e responsáveis, as mulheres que trabalham na área da saúde não abandonaram seus barcos, continuam firmes em suas funções, salvando vidas. Trabalhando na linha de frente, não escondem seu medo de contraírem o vírus. Muitas, já apresentam na pele, marcas dos equipamentos de proteção. São as heroínas da crise!

Incontrolável, a pandemia impacta diretamente o pandemônio da política, a economia do país e do mundo, afetando a luta pelo poder, por vezes, relegando a sobrevivência a outro plano…

A virtualidade, ferramenta fundamental nesse momento, vem facilitando e possibilitando inúmeras modalidades de conexões. Por meio dela temos feito compras, encontros de família, reuniões… o home Office tem sido, literalmente, o salvador da Pátria! Graças à virtualidade, muitos serviços essenciais mantêm sua continuidade.

Diante dessa realidade, estamos inaugurando uma nova forma de relacionarmos. Estamos vivendo um novo mundo! É nesse cenário caótico que nossa “malabarista” vai se metamorfoseando…

Assim, “Maria” vai se virando como pode: fazendo máscaras, compras para grupos de risco, doces ou comida para vender, olhando filhos e parentes idosos de quem precisa estar presencialmente no trabalho, buscando fontes de renda paralelas… Habituadas a pensar no coletivo, através das muitas funções que sempre desempenhou, a mulher vem conseguindo, a duras penas, manter-se em suas atividades e encargos. Enquanto “eternas cuidadoras” se multiplicam e transcendem!

Imersas num contexto de perdas e incertezas, vêm à tona as perguntas que não querem calar:

Quando tudo isso vai passar?

Como ficarão nossos planos, projetos e sonhos? 

Como viveremos na pós- pandemia?

Sabemos, por experiências anteriores, que é nas situações de crise que desacomodamos e crescemos. Para os chineses, crise significa oportunidade!

O isolamento social tem trazido privações, incertezas, angustia, tédio, depressão, dificuldades de todas as espécies, em especial, o medo maior que é o da doença, que muitas vezes, leva à morte.

Em contrapartida, estamos assistindo o meio ambiente agradecer a nossa pausa, com rios mais limpos, atmosfera menos poluída, fauna em festa. É a natureza que achando uma brecha para manifestar-se na sua exuberância e poder vai voltando a ocupar um antigo espaço perdido! 

Forçadas a permanecer em casa, muitas famílias estão convivendo mais com os filhos e as crianças agradecem pela oportunidade de terem os pais juntos, por mais tempo. As mulheres estão conciliando essas funções da maneira como podem, às custas de muito esforço e criatividade. Ouvi um relato de uma cliente que, em meio a uma reunião online, teve que acudir seu filho, numa crise de colicas. A única maneira que encontrou para acalmá-lo foi segurá-lo no colo  e massagear sua barriga. Tudo isso aconteceu durante a reunião…

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baiano é o ministro do brasil da educação

beto vianna

no dia em que choramos todos a morte do nosso querido baiano, o tomaz aroldo da mota santos, primeiro e único reitor preto da universidade federal de minas gerais, fico sabendo que o miserável ministro sem educação abraão vaintraube maquinou (não me vem à cabeça outro verbo administrativo) uma decisão revogando a portaria que estabelecia a política de cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação. isso às vésperas do ressentido ministro levar um pé na bunda, pelo que dizem as boas línguas. muito se diz por aí, e o próprio governo o diz, que o governo quer destruir a esquerda, e vaintraube no mec segue essa lógica ideológica. discordo. se o mec é um lugar sagrado pro governo conspurcar, é porque esses canalhas ressentidos não gostam nem de gente, nem das ciências. o que pra maioria de nós é requisito sine qua non de um ministro da educação, presses adoradores do nazismo (cada vez mais explicitamente), a antítese é verdadeira. 

veja, por exemplo, o baiano. gostava de gente e das ciências. bamba na imunologia, fez pós-doc no instituto pasteur. mas muito ao contrário de se gabar disso, usou seu brilho pra nos fazer brilhar a todos, como gestor plural, inclusivo, estimulante da atividade científica, primeiro do instituto de ciências biológicas da federal de minas gerais, depois da própria universidade, e, mais recentemente, da unilab – universidade da integração da lusofonia afro-brasileira. nesses lugares todos, lutou por uma universidade plural, inclusiva e de qualidade. tanto melhor pra gente e pras ciências. 

e vaintraube? foi mau aluno, pra dizer o mínimo (todos tiveram a oportunidade de ver seu currículo, e a justificativa ridícula, ao vivo e à cores, desse imbecil, pra sua incompetência). como prêmio por ter levado pau na academia, ganhou o direito de se vingar sentando a bunda suja na cadeira de ministro. vingar-se das gentes e das ciências. declaradamente, e nas reações administrativas frente à pasta, o bobo alegre não gosta de índio (só há um povo, disse o nazifascista). não gosta de preto. não gosta nem de chinês, coitado. não gosta de universidade. não gosta de professor. não gosta de antropologia, de sociologia, e, também coerentemente, tampouco de filosofia, que é “amar o saber”. antes que sua falta de maturidade e excesso de autoritarismo lhe rendesse perder, além da vergonha na cara, a pasta que infecta, conseguiu realizar mais essa safadeza, tirando da pós-graduação o reparo histórico, e necessário, às gentes, que são variadas, de fazer ciências, que também são várias. outro, e, esperamos, último golpe baixo do canalha minúsculo na gente e nas ciências. 

o querido baiano, vivo ou morto, continua a ser tudo que os canalhas vingativos não são e nem podem sonhar ser um dia, pois lhes falta tudo, na cabeça e no coração. baiano, vivo ou morto, é o ministro do brasil da educação.

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Hotel Waterloo, no Leblon

Paulo Speller[1]

Rio de Janeiro, quase 100 dias confinado, a caminho de um seminário na Argentina. O tema seria fascinante: integração entre universidades europeias, latino-americanas e africanas, preparei-me à ufa como dizem os cuiabanos, pois seria o moderador do debate, a convite da Universidade Nacional de Mar del Plata (UNMDP). Evento e voo cancelados, fiquei no Rio. Confinamento pra valer, sem ver a rua e muito menos a praia. Banho de sol todos os dias no terraço do prédio, às 11 horas. Cada apartamento tem seu horário marcado. Parece prisão. No apartamento cada um tem suas tarefas. Opero o aspirador toda terça, e, diariamente, lavo a louça e ainda providencio o jantar. Ufa! 

Nas horas livres participo de webinários. O que é isso? É uma invenção genial, com o uso de tecnologia super simples para realizar seminários em tempo real, cada um na sua casa, o que democratiza a participação de quem quiser, sem custo de viagem e hospedagem, com participantes de todo o mundo. No último, organizado por uma universidade colombiana, cada participante vinha de um país diferente, onde falei sobre a inovação das nossas universidades de integração internacional com a América Latina e a África, a UNILA e a UNILAB. A África tem uma experiência própria de um Instituto Internacional de Engenharia Sanitária e Ambiental que articula a formação e pesquisa de 28 países diferentes há mais de 50 anos, a idade de algumas de nossas universidades, como a UFMT e a Unicamp. Haja tanto webinário para preencher esses 100 dias.

100 dias me traz à memória o tempo que Napoleão resistiu ao cerco de tropas prussianas, britânicas, austríacas, holandesas e belgas depois de sua fuga da ilha de Elba em 1815, no Mediterrâneo. A rendição de Napoleão se deu depois desses 100 dias perto de Waterloo, um vilarejo hoje na Bélgica. Fico pensando se também eles  pensavam na volta à “normalidade” de antes, como nós diante da pandemia do COVID-19. Nada voltou a ser como antes, tanto é assim que desta vez mandaram Napoleão para a ilha de Santa Helena, antes portuguesa e hoje território britânico perdido no meio do Oceano Atlântico entre a África e a América do Sul. Aí estão os três “atores” do meu seminário na Argentina: Europa, África e América Latina. Mas nada voltou a ser como antes. Napoleão não tinha pra onde fugir de Santa Helena e acabou seus dias lá mesmo depois de seis anos, tornando-a a maior atração turística depois de sua morte. A França voltou a ser a monarquia da mesma Casa de Bourbon de antes com Luis XVIII e nós continuamos com o desafio de construir a integração entre as nossas universidades dos três continentes.

Mas o nosso seminário já tem nova data para setembro de 2021 em Mar del Plata e nós aqui vamos ganhando tempo com um novo webinário em junho e outros, organizados pela Obreal e pela UNMDP. Nossa integração não vai sucumbir nas praias de Santa Helena, nem terminaremos esta batalha em Waterloo. Ops, hora de preparar o jantar e lavar a louça.

Rio de Janeiro, junho de 2020

[1] Mineiro de João Monlevade, professor titular emérito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Paulo hoje representa no Brasil o Observatório Global Obreal de Barcelona (OBREAL.ORG).

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Não consigo respirar neste Brasil (des)governado

Frei Betto

Não consigo respirar neste Brasil (des)governado por militares que ameaçam as instituições democráticas e exaltam o golpe de Estado de 1964, que implantou 21 anos de ditadura; elogiam torturadores e milicianos; acertam o “toma lá, dá cá” com notórios corruptos do Centrão; plagiam ostensivamente os nazistas; manipulam símbolos judaicos; tramam, em reuniões ministeriais, agir ao arrepio da lei; proferem palavrões em reuniões oficiais, como se estivessem num antro de facínoras; debocham de quem observa os protocolos de prevenção à pandemia e saem às ruas, indiferentes aos mais de 31 mil mortos e suas famílias, como a celebrar tamanha letalidade.

“Não posso respirar” quando vejo a democracia asfixiada; a Polícia Militar proteger neofascistas e atacar quem defende a democracia; o presidente mais interessado em liberar armas e munições que recursos para combater a pandemia; o Ministério da Educação dirigido por um semianalfabeto que ameaça reprisar a Noite dos Cristais dos nazistas, proclama odiar povos indígenas e propõe prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal.

“Não posso respirar” ao ver os comandantes das Forças Armadas calados diante de um presidente destemperado que não esconde ter como prioridade de governo a sua proteção e a de seus filhos, todos suspeitos de graves crimes e cumplicidade com assassinos profissionais.

“Não posso respirar” diante da inércia dos partidos ditos progressistas, enquanto a sociedade civil se mobiliza em contundentes manifestos de indignação e pela defesa da democracia.

“Não posso respirar” diante desse empresariado que, de olho nos lucros e indiferente às vítimas da pandemia, pressiona para a abertura imediata de seus negócios, enquanto os leitos hospitalares estão lotados e covas rasas se multiplicam nos cemitérios quais gengivas desdentadas de Tânatos.

“Não posso respirar” quando, no Brasil e nos EUA, cidadãos são agredidos, presos, torturados e assassinados pelo “crime” de serem negros e, portanto, “suspeitos”.

Falta-me ar ao ver João Pedro, um garoto de 14 anos, perder a vida dentro de casa ao levar um tiro de fuzil pelas costas, enquanto brincava com amigos. Ou entregadores de encomendas serem assassinados por policiais que nos consideram imbecis ao tentar justificar a morte de tantos civis desarmados.

“Não posso respirar” ao pensar que o bárbaro crime cometido contra George Floyd se repete todos os dias e permanece impune por não haver ali uma câmera capaz de flagrar assassinatos semelhantes.

Ou ao ver Trump, do alto de sua arrogância, reagir aos protestos antirracistas ameaçando calar os manifestantes com o indiciamento deles como terroristas e a intervenção de tropas do Exército.

Como oxigenar minha cidadania, meu espírito democrático, minha tolerância, ao me ver cercado por mimólogos da Ku Klux Klan; generais improvisados em ministros da Saúde em plena tragédia sanitária; manifestantes infringirem, impunes, a lei de segurança nacional; e a Bolsa de Valores subir, enquanto milhares de caixões baixam nas tumbas que recebem as vítimas da pandemia?

Preciso respirar! Não deixar que sufoquem a sociedade civil, a mídia, a liberdade de expressão, a arte, os direitos civis, o futuro dessa geração condenada a viver esse presente nefasto.

Respiro, apesar de tudo, quando leio o que o estilista Marc Jacobs postou no Instagram depois de ter uma de suas lojas destruída pelos protestos em Los Angeles: “Nunca deixe que eles te convençam que vidro quebrado ou saque é violência. Fome é violência. Morar na rua é violência. Guerra é violência. Jogar bomba nas pessoas é violência. Racismo é violência. Supremacia branca é violência. Nenhum cuidado de saúde é violência. Pobreza é violência. Contaminar fontes de água para obter lucro é violência. Uma propriedade pode ser recuperada, vidas não”.

Faço meus os versos de Cora Coralina: quero “mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros”.

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Artigo do Carlos Vianna, Lisboa

A tragédia brasileira

Canto com Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.” E com o poeta Thiago de Mello, que escreveu após o golpe militar de 1964: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar.” Tenho fé que chegará o tempo das manifs, da pressão popular, porventura exitosa, para que Bolsonaro se afaste e haja novas eleições. Para que se possa virar esta página negra da história brasileira.

O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril passado, presidida por Bolsonaro, repercutiu em todo o mundo. Depois de assistir na televisão a íntegra do vídeo, os sentimentos que surgem são de horror, revolta e uma certa vergonha. As imagens valem por si e espelham a degradação política a que se chegou no Brasil. O governo de Bolsonaro é uma tragédia nacional.

Em 22 de abril, os mortos oficiais pela covid-19 somavam por volta de três mil. No dia 24 de maio são 23 mil. Chegarão seguramente a mais de 50 mil em poucas semanas. O Brasil é o novo epicentro da pandemia, o segundo em número de infectados. E o vírus não é democrático, atinge os pobres e miseráveis com mais força, face à precariedade do sistema de saúde pública.

Na reunião, pouco ou nada se tratou do combate à pandemia, com exceção do tímido ministro da Saúde, que já se demitiu há duas semanas. Escapou do manicómio e fez bem. Os temas do Presidente eram: “dar armas para a população”, reclamar da falta de solidariedade dos ministros para defendê-lo e à sua família, xingar com os piores nomes os governadores e prefeitos que decretaram o isolamento social, vociferar contra os poderes legislativo e judiciário, afirmar o seu poder de interferir em todos os ministérios e órgãos de Estado, na base do “quem manda aqui sou eu”. A proposta de seu ministro do Meio Ambiente é “passar com uma boiada em cima da legislação e regras ambientais, para licenciar a toque de caixa os projetos agro-pecuários”. O ministro das Finanças, ultra-liberal e representante do chamado “mercado”, quer privatizar o Banco do Brasil, uma das jóias da coroa, apetecível para os grandes grupos financeiros internacionais. Já o extremista ministro da Educação quer “prender os vagabundos do Supremo Tribunal Federal”. E por aí seguiu a “pauta” da reunião.

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MAÇà

Como outras pessoas, passei décadas envolvido no burburinho das cidades. Nas ocorrências e consequências. Trânsito agarrado, monóxido de carbono, buzinaços, filas, tombadas e trombadinhas, hambúrguer como almoço. A velocidade do tempo. 

“Estou atrasado”, repetia, como eu, o coelho de Alice, consultando o relógio. 

De repente ela abre sua caixa. Pandora, a primeira mulher, criada por Zeus. 

Entre os males soltos essa pandemia, horror. Esse governo, horripilante. A quarentena, horrível.

Ficamos reclusos qual prisão domiciliar. Máscaras a lembrar os bandidos do faroeste.

Assim isolado, ressurgiu-me a obrigação negligenciada do pensar. Pensar para passar o tempo.

Hoje lembrei-me de certo livro,  avô do Google. O Tesouro da Juventude. 

Lido ali pelos anos 1940 e tantos. Dele veio-me à memória a ilustração de belas frutas vermelhas de uma árvore ali brevemente citada. Tempos depois me surpreendi. Igual havia no sítio de minha tia casada com o Horta. Português dedicado à agricultura familiar, o sobrenome compatível com a atividade. Naquela sua macieira viam-se flores e maçãzinhas recém dadas à  luz. Brevemente receberiam a explosão da cor e do perfume. 

Nelas não se podia botar as mãos, por exigência,  ciúme e cuidado do velho portuga. 

Uma coisa puxa outra, eu sem fazer nada mesmo, por curiosidade quis conhecer algo mais sobre essa fruta. 

Descobri, vocês sabiam? que há cerca de 1.700 variedades e que existiam práticas religiosas com maçãs na mitologia nórdica. Pena que ainda não sei para que servem essas descobertas.

Por outro lado, notei a presença da maçã em inúmeras situações, contendo talvez alguma simbologia. Vejam só poucos exemplos. Eva, Guilherme Tell, Branca de Neve, na boca do leitão de Natal, no 11° trabalho de Hércules, a maçã do rosto, na árvore de Newton. Ah! as maçãs do amor nas antigas barraquinhas – alguém mais é desse tempo? As maçãs importadas oferecidas a aniversariantes e doentes, embrulhadas em papel de seda azul. Chique demais.

Neste meu curto vaguear cheguei às aulas de Latim, no antigo Colégio Estadual. 

Entre ditados, declinações e catilinárias, algumas frases, como exercício, causavam desatentas, incorretas ou  humorísticas traduções.  

“Mater tua mala burra est”. 

Não é xingatório, como aparenta. Só digo, para quem não sabe ou não se lembrava, que “mala” significa maçã. Maçãs, aliás. 

Pronto. Enganei por este tempo a ociosidade.

Termino com citação apenas de um verso de música cantada  por Jorge Veiga, no Carnaval de 1954:

                  🎼🎵 A história da maçã/ é pura fantasia (…) 

José Mauro da Costa, professor, aposentado.

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Há caracóis

Pois há. Tem é de se ir para a fila. E os textos não continuam os títulos, diz-se na minha profissão, mas eu estou certa de que o Arthur vai perdoar-me esta liberdade de escrita.

É preciso lembrar que o ritual dos caracóis, petisco de fim da tarde, acompanhado por cerveja fresca, é um ritual da Primavera. Em Portugal, o princípio do desconfinamento e do alívio das medidas de exceção coincidiu precisamente com a chegada do bom tempo e do retomar da vida ao ar livre, agora sob rigorosas medidas de segurança e de distanciamento. A Pastelaria Colóquio, na Quinta Grande, em Alfragide, na Amadora, cidade-satélite de Lisboa, é famosa pelos caracóis em junho, pelo que não se hesita na escolha. Mais vale encomendar com antecedência pelo telefone, à semelhança de todas as refeições durante o Estado de Exceção e, posteriormete, do Estado de Calamidade, em que os restaurantes, cafés e pastelarias deixaram de servir refeições dentro de portas. Começaram a reabrir a 18 de maio. O Colóquio nunca fechou, pois agarrou-se à prerrogativa da modalidade de take away e consta que até fez negócio de monta na Páscoa, com o tradicional cabrito assado na ementa. «Mais houvesse!» – gabou-se na página do Facebook. 

O procedimento é comum a outros estabelecimentos comerciais: como não pode ter mais de um determinado número de clientes dentro do estabelecimento (em função da área), faz-se fila à porta. Não é fácil, porque o passeio é estreito e a freguesia numerosa. 

A receita dos caracóis é relativamente simples, saem de uma enorme panela com ingredientes que se reclamam secretos e eu ignoro, pois sou leiga. Tem imenso molho, para o que se entregam a quem compra num recipiente que eles mesmos fornecem. Depois acomoda-se em saco, para não entornar.

O programa do fim de tarde foi então delineado a contar com o levantamento da iguaria, diretos a Campolide pela Radial de Benfica, isto é um pulinho, para o lanche do fim da tarde. «Comprei minis» – lembra a Marta pelo telemóvel. «Devia ter comprado cerveja de tamanho normal?». Não foi a única dúvida. Quanto a cerveja há sempre o eterno benfica-sporting das marcas. «Sagres ou Superbock?». Resolveu-se por uma delas e não houve polémica. A acompanhar, pão torrado, e servido na nova mobília que compõe o pátio, abrigado do vento. Não se ouve o ruído habitual da cidade, apesar de o movimento já começar a notar-se nas ruas. Pessoas de máscara, carros a circular e um avião a rasgar o céu de vez em quando. A verdade é já passaram dois meses inteiros do início do confinamento, que afastou as pessoas nas famílias, os empregados das empresas, os estudantes das escolas (à exceção dos supermercados, postos de abastecimento de combustíveis, farmácias e hospitais, únicos que continuaram abertos). Muito devido a restrições como o fecho do comércio e ao confinamento, a pandemia tranfigurou as cidades, afastou os turistas, intrometeu-se nas relações familiares, teve consequências devastadoras para a economia.  

A mágoa maior foi ver as ruas da cidade desertas, outrora repletas de gente, entre eles turistas, da Baixa a Belém. Lojas encerradas, ruas vazias de transeuntes e de trânsito nulo tornaram Lisboa irreconhecível. Estão agora a reabrir aos poucos e por fases, consoante a dimensão. Porém, nada que se assemelhe ao bulício costumeiro, quando se esperava que 2020 fosse um dos melhores anos, com afluência turística sem precedentes (tendo por referência 2019, com 27 milhões de turistas, quase triplicando a população do País), com as inerentes consequências devastadoras para a economia do País, principalmente assente no turismo.

Foi a segunda vez que vimos a Marta em dois meses (estivera a almoçar connosco uns dias antes, assim que terminou a proibição de circular entre concelhos). A situação foi caricata. Estamos a 10 minutos de distância de carro, porém ela em Campolide, em Lisboa, e nós em Alfragide, que já fica noutro concelho. 

À chegada, toca de tirar os sapatos, as máscaras e as luvas. É imperativo ao chegar a casa alheia e até na própria casa. Não há beijos nem abraços, e a turra que dei à minha filha com a testa no seu ombro já é uma ousadia. Estamos todos a aprender a viver com novos comportamentos.

A indumentária é de quase-Verão e os cabelos exibem a recente visita ao profissional. Uma dor de cabeça, tanto para o público feminino, como para o masculino. A D. Anabela, cuja reputação faz dela a melhor cabeleireira da Quinta Grande, tem estabelecimento num gaveto, muito perto do Colóquio e durante dois meses esteve de taipal corrido. Afinal, a urbanização não passa de uma versão urbana da aldeia e ambos os estabelecimentos ficam junto do centro, a Praceta do Comércio, onde ficam bancos, restaurantes, supermercados e a farmácia. Reabriu a 4 de maio. Agora o taipal fica levantado todo o dia, desde a reabertura de cabeleireiros e barbeiros, de porta escancarada e janelas abertas, seguindo as indicações superiores e o bom-senso, «para arejar». Dá as boas-vindas de máscara e viseira, e oferece-se para guardar a minha carteira num saco de plástico, pois nada pode estar em cima das bancadas, nem as eternas revistas do cor de rosa. Também não se perde nada.

Pergunto-lhe como correu a reabertura e de que forma está a seguir as normas da Direção-Geral da Saúde. Os resultados estão à vista. São batas e outros equipamentos de proteção, além da desinfeção regular do chão, bancadas e cadeiras, e dos instrumentos que usa para o trabalho: pentes, escovas e trinchas. Ainda assim, a D. Anabela tem visto entrar pela porta dentro clientes que não levam as indicações a sério e se recusam a usar máscara. Já o cabeleireiro de homens do bairro, o Barbairos (é cabeleireiro/barbeiro, e adotou o nome que exibe como estratégia de marketing, garantindo que o letreiro é chamativo) avisa na sua página no Facebook que está aberto aos clientes, que espera regressem ao estabelecimento, porém não trata das barbas. A explicação é simples: o cabelo, sim senhor, é serviço que se faz com máscara (tanto do profissional como do cliente); já a barba não é exequível tratar nas atuais circunstâncias, pois o cliente teria de retirar a proteção. Nada feito.  

O regresso a casa por estes dias é de estranhar. O trânsito escasseia no IC 19, a auto-estrada que liga a periferia de Lisboa ao concelho de Sintra e que, em tempos pré-pandemia costuma entupir a partir das 17.30 até às 20, ou mais. O fim de tarde é sempre em para-arranca.

Mas isso era em tempos. Agora tudo mudou.

A primeira ida ao hipermercado, após declarado o estado de emergência, foi feita com cautelas: luvas e máscaras, viseiras para alguns. Entradas controladas e espaçadas, álcool borrifado para cima dos carrinhos de compras e um amplo acrílico separando os consumidores dos operadores de caixa. Estas foram as mudanças que mais saltaram à vista no exterior no respeito ao necessário afastamento social, e que de uma maneira geral vimos ser cumprido sem grandes percalços pelos portugueses. Em família, nas suas casas, o respeito pelas recomendações da Direção Geral de Saúde ficou ao critério dos próprios. Da minha experiência, posso dizer que o bom senso não escolhe idades. Uns dizem que somos um povo paciente, outros acrescentam que uma q.b. dose de receio também contribuiu. Medidas governativas decididas a tempo fizeram o resto. A imprensa estrangeira elogia o exemplo português, mas a procissão ainda vai no adro… como diz o povo.  

A palavra-chave é incerteza: como será o futuro próximo? Para quem está em teletrabalho, parece que, graças às tecnologias cada vez mais sofisticadas, a solução funciona e confirma-se que para muitas profissões é possível trabalhar, e bem, à distância. Mas, e o contacto cara a cara, as expressões que acrescentam à imagem palavras não ditas, o que se perde na comunicação online mesmo por Skype, Teams, Zoom, e outros canais que vão pululando? É como ir à mercearia do bairro e já não poder cheirar a fruta e escolher entre o molho de agriões ou o de nabiças em função da frescura do verde. A encomenda por agora faz-se à porta, frente a um separador de acrílico, e a fila fica no passeio, ordeira. Mas aos poucos, o comércio vai “desconfinando”. A lavandaria, a loja de comida para bebé e o talho nunca fecharam, embora as entradas estejam restritas. Mas outros negócios de proximidade ainda não reabriram. A loja do chinês, a loja dos arranjos de costura, o sapateiro… E fazem tanta falta! 

Cláudia Baptista

Cristina Baptista

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DEZ DICAS PARA ENFRENTAR A RECLUSÃO

Frei Betto

       Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.

       Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forcada pela pandemia:

       1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.

       2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.

       3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.

       4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.

       5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.

       6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.

       7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico. 

       8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua. 

       9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.

       10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros. Assine os artigos do autor e receba seus futuros livros: mhgpal@gmail.com

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Coronavírus foi uma benção, diz o ministro Paulo Guedes em 15/05/2020

“O Brasil é a única economia do mundo que está aumentando as exportações. O que era uma maldição virou um bênção. Foi uma maldição, mas, curiosamente, no momento em que o meteoro atinge o Brasil com essa pandemia, o que era maldição vira benção. As cadeias produtivas estão rompendo e o Brasil está vendendo produtos agrícolas e minérios”.

UMBILICUS MUNDI

Crônica assinada pelo jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho, de Recife (PE)

A verdade “é um cachorro preso num canil”, dizia Shakespeare (O Rei Lear). E que nem sempre anda solto pelas ruas, poderíamos completar. Assim tem sido, ao longo de toda história da humanidade. Por exemplo, não há qualquer prova de que existiu, mesmo, um Cavalo de Troia – em cujo ventre, de madeira, se esconderam soldados. Sequer de ter nascido Helena, razão daquela guerra. A palavra cesariana, diferente do que sugerem as enciclopédias médicas, não vem do imperador Cesar. E Nero, quando ardeu Roma, estava em Anzio. Distante 50 km. Na volta, em vez de tocar sua lira, tentou foi apagar as chamas. Gutemberg não inventou a imprensa. Que tipos móveis – em cerâmica, madeira e metal – existiam já, na China, 3 mil anos antes. E jamais publicou um livro. A Bíblia de 42 Linhas, conhecida como de Gutemberg, foi obra de Peter Schöffer e Johann Fust. Não há prova de que a holandesa Margaretha Geertruida Zelle, mais conhecida como Mata Hari, tenha sido espiã da Alemanha. Sherlock Holmes disse “Elementar”. E, também, “Meu caro Watson”. As duas frases juntas, nunca. Nem Ingrid Bergman, no filme Casablanca, disse “Toca outra vez, Sam”. A frase certa é Play it, SamPlay As time goes by”.

Bom lembrar disso ao refletir sobre o Brasil. Para tentar descobrir, entre Moro e Bolsonaro, quem mente. Sem registros das conversas, devemos buscar um critério válido para encontrar a verdade. Recordo velho ministro do Supremo. Quando lhe perguntavam “como julgar?”, recomendava procurar o Umbilicus Mundi. O centro da dúvida. E a dúvida, no caso, é apenas uma. No meio desse terremoto da Covid-19, para que demitir o DG da Polícia Federal? Por que não esperar? Qual a razão de tanta pressa?, eis a questão. Como paira, sobre isso, um enorme silêncio, cabe só especular. Talvez por conta de inquéritos (inclusive das fake news) do min. Alexandre de Moraes, no Supremo –  se diz à boca pequena. E que podem atingir pessoas próximas do poder. Muito. Além do que deveria. Por tudo, então, Moro fez bem. Não levou desaforos para casa. Criou novo lema, “Verdade acima de tudo. Fazer o certo acima de todos”. E saiu maior do que entrou. Agora é esperar para saber a verdadeira história, por trás das versões. Oscar Wilde (Frases e Máximas) dizia que “Se alguém diz a verdade, pode estar certo de ser descoberto, mais cedo ou mais tarde”. Esperamos que sim. E logo.

1º de maio de 2020, José Paulo Cavalcanti Filho – jp@jpc.com.br

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Texto enviado pelo jornalista Otaviano Lage

O vídeo abaixo, em que o Departamento de Economia da UFMG faz projeção sobre a curva do impacto do coronavírus sobre a sociedade, mostra, de forma serena, o falso dilema que se pretende impor, como se existisse uma dicotomia entre economia e saúde. É o momento para se perguntar: sem saúde, como poderá, e para que, existirá a Economia? Essa discussão , que beira o bizantinismo, esconde o raciocínio que, humildemente a meu ver, precisa se tornar mais amplo, através de discussão não presa em âncoras ideológicas. Como o professor Nelson Werneck Sodré alertou em seminário, na década de 60, do século passado, “ideologia não é sinônimo de antolhos”. 

O coronavírus não possui preconceito de classe, de idade, de cor, de opção sexual, ou religiosa. Atinge a todos, indiscriminadamente. Basta não adotar, a tempo e hora, as medidas mitigadoras necessárias para evitar a sua eclosão. China, onde tudo começou, Itália, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos da América são exemplos lamentavelmente vibrantes desse raciocínio. 

É preciso ganhar tempo contra a pandemia, até que se tenha remédio e vacina eficazes. Vírus costumam chegar para ficar e por isso têm que ser controlados, para não começarem a desenvolver mutações, que trarão outros problemas, mais graves, ainda. É característica do capitalismo ser acumulativo. 

Em momento como o que enfrentamos agora, não é hora de se pensar em mais valia, pois o modo de produção tem de estar necessariamente em grande parte estancado. A robótica felizmente não alcançou a produção plena capaz de substituir o trabalho humano. Na toada em que vínhamos, um mundo sem humanos não seria elucubração do realismo mágico. Era, pasme-se, anseio de uns poucos! Pensando dialeticamente, se a hora não aconselha a apropriação da mais valia e do lucro, pois a produção está fortemente estancada, porque não distribuir parte do que foi acumulado, a partir do trabalho da humanidade? É dever ético a depender exclusivamente da detecção dos locais onde o dinheiro está represado. Essa divisão pode ser vista como um primeiro movimento destinado a descobrir outras e novas formas de relação social para vigorar na futura retomada da produção. 

No Brasil precisaremos mais ainda, de rediscutir o sistema educacional, a partir mesmo da educação infantil. O coronavírus mostrou que enfrentamos sério problema civilizatório. O capitalismo globalizado, impositivo, selvagem está se vendo diante do espelho. Países venderam produtos necessários a alguns países e não entregaram a encomenda. A repassaram para outros que ofereceram pagamento mais alto, e à vista. 

Em momentos de crise, como o atual, é que se conhece o caráter de pessoas, governos, nações. Parafraseando, o coronavírus está dizendo algo mais ou menos assim: “depois de mim, a Terra não mais será a mesma”. Não terá lugar para distopias. Bom momento para se retomar belas e éticas utopias. 

Abraços Otaviano Lage 

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